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João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado
de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e
obscura taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou
do pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão
para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a
venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em
dinheiro.
Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz
atirou-se à labutação ainda com mais ardor, possuindo-se de tal delírio
de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia
sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo
travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lha,
mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a
Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz
de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia
fretes na cidade.
Bertoleza também trabalhava forte; a sua
quitanda era a mais bem afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à
noite peixe frito e iscas de fígado; pagava de jornal a seu dono vinte
mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha de parte quase que o
necessário para a alforria. Um dia, porém, o seu homem, depois de correr
meia légua, puxando uma carga superior às suas forças, caiu morto na
rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta.
João Romão
mostrou grande interesse por esta desgraça, fez-se até participante
direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a lamentou,
que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras.
Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofinações e dificuldades.
"Seu senhor comia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre
mulher ter de escarrar pr’ali, todos os meses, vinte mil-réis em
dinheiro!" E segredou-lhe então o que tinha juntado para a sua
liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias,
porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na
quitanda pelos fundos.
Daí em diante, João Romão tornou-se o
caixa, o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de pouco tempo
era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia e era também quem
punha e dispunha dos seus pecúlios, e quem se encarregava de remeter ao
senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma conta corrente, e a
quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um
pulo até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de "Seu João", como
ela dizia. Seu João debitava metodicamente essas pequenas quantias num
caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em letras
cortadas de jornal: "Ativo e passivo de Bertoleza".
E por tal
forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da mulher, que
esta afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cegamente,
todo e qualquer arbítrio. Por último, se alguém precisava tratar com ela
qualquer negócio, nem mais se dava ao trabalho de procurá-la, ia logo
direito a João Romão.
Quando deram fé estavam amigados.
Ele
propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços abertos, feliz em
meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza,
Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o
homem numa raça superior à sua.
João Romão comprou então, com as
economias da amiga, alguns palmos de terreno ao lado esquerdo da venda,
e levantou uma casinha de duas portas, dividida ao meio paralelamente à
rua, sendo a parte da frente destinada à quitanda e a do fundo para um
dormitório que se arranjou com os cacarecos de Bertoleza. Havia, além
da cama, uma cômoda de jacarandá muito velha com maçanetas de metal
amarelo já mareadas, um oratório cheio de santos e forrado de papel de
cor, um baú grande de couro cru tacheado, dois banquinhos de pau feitos
de uma só peça e um formidável cabide de pregar na parede, com a sua
competente coberta de retalhos de chita.
O vendeiro nunca tivera tanta mobília.
— Agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você vai ficar forra; eu entro com o que falta.
Nesse
dia ele saiu muito à rua, e uma semana depois apareceu com uma folha de
papel toda escrita, que leu em voz alta à companheira.
— Você
agora não tem mais senhor! declarou em seguida à leitura, que ela ouviu
entre lágrimas agradecidas. Agora está livre. Doravante o que você
fizer é só seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o cativeiro
de pagar os vinte mil-réis à peste do cego!
— Coitado! A gente se queixa é da sorte! Ele, como meu senhor, exigia o jornal, exigia o que era seu!
— Seu ou não seu, acabou-se! E vida nova!
Contra
todo o costume, abriu-se nesse dia uma garrafa de vinho do Porto, e os
dois beberam-na em honra ao grande acontecimento. Entretanto, a tal
carta de liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo,
que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar à burla maior
formalidade, representava despesa porque o esperto aproveitara uma
estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer
conhecimento do fato; o que lhe constou, sim, foi que a sua escrava lhe
havia fugido para a Bahia depois da morte do amigo.
— O cego
que venha buscá-la aqui, se for capaz... desafiou o vendeiro de si para
si. Ele que caia nessa e verá se tem ou não pra pêras!
Não
obstante, só ficou tranquilo de todo daí a três meses, quando lhe
constou a morte do velho. A escrava passara naturalmente em herança a
qualquer dos filhos do morto; mas, por estes, nada havia que recear:
dois pândegos de marca maior que, empolgada a legitima, cuidariam de
tudo, menos de atirar-se na pista de uma crioula a quem não viam de
muitos anos àquela parte. "Ora! bastava já, e não era pouco, o que lhe
tinham sugado durante tanto tempo!"
Bertoleza representava agora
ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de
amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada
estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e
depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que
havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a
casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o amigo andava
ocupado lá por fora; fazia a sua quitanda durante o dia no intervalo de
outros serviços, e à noite passava-se para a porta da venda, e,
defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas,
que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias,
comprar à praia do Peixe. E o demônio da mulher ainda encontrava tempo
para lavar e consertar, além da sua, a roupa do seu homem, que esta,
valha a verdade, não era tanta e nunca passava em todo o mês de alguns
pares de calças de zuarte e outras tantas camisas de riscado.
João
Romão não saia nunca a passeio, nem ia à missa aos domingos; tudo que
rendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa
econômica e daí então para o banco. Tanto assim que, um ano depois da
aquisição da crioula, indo em hasta pública algumas braças de terra
situadas ao fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de
tempo, de construir três casinhas de porta e janela.
Que
milagres de esperteza e de economia não realizou ele nessa construção!
Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra,
que o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtavam à pedreira do
fundo, da mesma forma que subtraiam o material das casas em obra que
havia por ali perto.
Estes furtos eram feitos com todas as
cautelas e sempre coroados do melhor sucesso, graças à circunstância de
que nesse tempo a polícia não se mostrava muito por aquelas alturas.
João Romão observava durante o dia quais as obras em que ficava
material para o dia seguinte, e à noite lá estava ele rente, mais a
Bertoleza, a removerem tábuas, tijolos, telhas, sacos de cal, para o
meio da rua, com tamanha habilidade que se não ouvia vislumbre de rumor.
Depois, um tomava uma carga e partia para casa, enquanto o outro ficava
de alcateia ao lado do resto, pronto a dar sinal, em caso de perigo; e,
quando o que tinha ido voltava, seguia então o companheiro, carregado
por sua vez.
Nada lhes escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos de pau, o banco ou a ferramenta dos marceneiros.
E o fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas, foram o ponto de partida do grande cortiço de São Romão.
Hoje
quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro
conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega;
e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número
de moradores.
Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia
santo, não perdendo nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio,
deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber,
enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas, comprando por
dez réis de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus
senhores, apertando cada vez mais as próprias despesas, empilhando
privações sobre privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de
bois, João Romão veio afinal a comprar uma boa parte da bela pedreira,
que ele, todos os dias, ao cair da tarde, assentado um instante à porta
da venda, contemplava de longe com um resignado olhar de cobiça.
Pôs
lá seis homens a quebrarem pedra e outros seis a fazerem lajedos e
paralelepípedos, e então principiou a ganhar em grosso, tão em grosso
que, dentro de ano e meio, arrematava já todo o espaço compreendido
entre as suas casinhas e a pedreira, isto é, umas oitenta braças de
fundo sobre vinte de frente em plano enxuto e magnífico para construir.
Justamente
por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à direita da
venda, separado desta apenas por aquelas vinte braças; de sorte que todo
o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros,
despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril.
Comprou-o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do
Hospício com uma loja de fazendas por atacado. Corrida uma limpeza
geral no casarão, mudar-se-ia ele para lá com a família, pois que a
mulher, Dona Estela, senhora pretensiosa e com fumaças de nobreza, já
não podia suportar a residência no centro da cidade, como também sua
menina, a Zulmirinha, crescia muito pálida e precisava de largueza para
enrijar e tomar corpo.
Isto foi o que disse o Miranda aos
colegas, porém a verdadeira causa da mudança estava na necessidade, que
ele reconhecia urgente, de afastar Dona Estela do alcance dos seus
caixeiros. Dona Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se
casada havia treze anos e durante esse tempo dera ao marido toda sorte
de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo ano de matrimônio, o
Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério; ficou furioso e o seu
primeiro impulso foi de mandá-la para o diabo junto com o cúmplice; mas
a sua casa comercial garantia-se com o dote que ela trouxera, uns
oitenta contos em prédios e ações da divida publica, de que se
utilizava o desgraçado tanto quanto lhe permitia o regime dotal. Além de
que, um rompimento brusco seria obra para escândalo, e, segundo a sua
opinião, qualquer escândalo doméstico ficava muito mal a um negociante
de certa ordem. Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só
com a ideia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para
recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e
afeito à hombridade de português rico que já não tem pátria na Europa.
Acovardado
defronte destes raciocínios, contentou-se com uma simples separação de
leitos, e os dois passaram a dormir em quartos separados. Não comiam
juntos, e mal trocavam entre si uma ou outra palavra constrangida,
quando qualquer inesperado acaso os reunia a contragosto.
Odiavam-se.
Cada qual sentia pelo outro um profundo desprezo, que pouco a pouco se
foi transformando em repugnância completa. O nascimento de Zulmira veio
agravar ainda mais a situação; a pobre criança, em vez de servir de elo
aos dois infelizes, foi antes um novo isolador que se estabeleceu
entre eles. Estela amava-a menos do que lhe pedia o instinto materno
por supô-la filha do marido, e este a detestava porque tinha convicção
de não ser seu pai.
Uma bela noite, porém, o Miranda, que era
homem de sangue esperto e orçava então pelos seus trinta e cinco anos,
sentiu-se em insuportável estado de lubricidade. Era tarde já e não
havia em casa alguma criada que lhe pudesse valer. Lembrou-se da
mulher, mas repeliu logo esta ideia com escrupulosa repugnância.
Continuava a odiá-la. Entretanto este mesmo fato de obrigação em que
ele se colocou de não servir-se dela, a responsabilidade de desprezá-la,
como que ainda mais lhe assanhava o desejo da carne, fazendo da esposa
infiel um fruto proibido. Afinal, coisa singular, posto que moralmente
nada diminuísse a sua repugnância pela perjura, foi ter ao quarto dela.
A
mulher dormia a sono solto. Miranda entrou pé ante pé e aproximou-se da
cama. "Devia voltar!... pensou. Não lhe ficava bem aquilo!..." Mas o
sangue latejava-lhe, reclamando-a. Ainda hesitou um instante, imóvel, a
contemplá-la no seu desejo.
Estela, como se o olhar do marido
lhe apalpasse o corpo, torceu-se sobre o quadril da esquerda, repuxando
com as coxas o lençol para a frente e patenteando uma nesga de nudez
estofada e branca. O Miranda não pôde resistir, atirou-se contra ela,
que, num pequeno sobressalto, mais de surpresa que de revolta,
desviou-se, tornando logo e enfrentando com o marido. E deixou-se
empolgar pelos rins, de olhos fechados, fingindo que continuava a
dormir, sem a menor consciência de tudo aquilo.
Ah! ela contava
como certo que o esposo, desde que não teve coragem de separar-se de
casa, havia, mais cedo ou mais tarde, de procurá-la de novo.
Conhecia-lhe o temperamento, forte para desejar e fraco para resistir ao
desejo.
Consumado o delito, o honrado negociante sentiu-se
tolhido de vergonha e arrependimento. Não teve animo de dar palavra, e
retirou-se tristonho e murcho para o seu quarto de desquitado.
Oh! como lhe doía agora o que acabava de praticar na cegueira da sua sensualidade.
— Que cabeçada!... dizia ele agitado. Que formidável cabeçada!...
No
dia seguinte, os dois viram-se e evitaram-se em silêncio, como se nada
de extraordinário houvera entre eles acontecido na véspera. Dir-se-ia
até que, depois daquela ocorrência, o Miranda sentia crescer o seu ódio
contra a esposa. E, à noite desse mesmo dia, quando se achou sozinho na
sua cama estreita, jurou mil vezes aos seus brios nunca mais, nunca
mais, praticar semelhante loucura.
Mas, daí a um mês, o pobre homem, acometido de um novo acesso de luxúria, voltou ao quarto da mulher.
Estela
recebeu-o desta vez como da primeira, fingindo que não acordava; na
ocasião, porém, em que ele se apoderava dela febrilmente, a leviana,
sem se poder conter, soltou-lhe em cheio contra o rosto uma gargalhada
que a custo sopeava. O pobre-diabo desnorteou, deveras escandalizado,
soerguendo-se, brusco, num estremunhamento de sonâmbulo acordado com
violência.
A mulher percebeu a situação e não lhe deu tempo para
fugir; passou-lhe rápido as pernas por cima e, grudando-se-lhe ao
corpo, cegou-o com uma metralhada de beijos.
Não se falaram.
Miranda
nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta no prazer.
Estranhou-a. Afigurou-se-lhe estar nos braços de uma amante apaixonada:
descobriu nela o capitoso encanto com que nos embebedam as cortesãs
amestradas na ciência do gozo venéreo. Descobriu-lhe no cheiro da pele e
no cheiro dos cabelos perfumes que nunca lhe sentira; notou-lhe outro
hálito, outro som nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a
loucamente, com delírio, com verdadeira satisfação de animal no cio.
E
ela também, ela também gozou, estimulada por aquela circunstância
picante do ressentimento que os desunia; gozou a desonestidade daquele
ato que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se toda,
rangendo os dentes, grunhindo, debaixo daquele seu inimigo odiado,
achando-o também agora, como homem, melhor que nunca, sufocando-o nos
seus braços nus, metendo-lhe pela boca a língua úmida e em brasa.
Depois, um arranco de corpo inteiro, com um soluço gutural e
estrangulado, arquejante e convulsa, estatelou-se num abandono de pernas
e braços abertos, a cabeça para o lado, os olhos moribundos e
chorosos, toda ela agonizante, como se a tivessem crucificado na cama.
A
partir dessa noite, da qual só pela manhã o Miranda se retirou do
quarto da mulher, estabeleceu-se entre eles o hábito de uma felicidade
sexual, tão completa como ainda não a tinham desfrutado, posto que no
intimo de cada um persistisse contra o outro a mesma repugnância moral
em nada enfraquecida.
Durante dez anos viveram muito bem
casados; agora, porém, tanto tempo depois da primeira infidelidade
conjugal, e agora que o negociante já não era acometido tão
frequentemente por aquelas crises que o arrojavam fora de horas ao
dormitório de Dona Estela; agora, eis que a leviana parecia disposta a
reincidir na culpa, dando corda aos caixeiros do marido, na ocasião em
que estes subiam para almoçar ou jantar.
Foi por isso que o Miranda comprou o prédio vizinho a João Romão.
A
casa era boa; seu único defeito estava na escassez do quintal; mas para
isso havia remédio: com muito pouco compravam-se umas dez braças
daquele terreno do fundo que ia até à pedreira, e mais uns dez ou quinze
palmos do lado em que ficava a venda.
Miranda foi logo entender-se com o Romão e propôs-lhe negócio. O taverneiro recusou formalmente.
Miranda insistiu.
—
O senhor perde seu tempo e seu latim! retrucou o amigo de Bertoleza.
Nem só não cedo uma polegada do meu terreno, como ainda lhe compro, se
mo quiser vender, aquele pedaço que lhe fica ao fundo da casa!
— O quintal?
— É exato.
— Pois você quer que eu fique sem chácara, sem jardim, sem nada?
— Para mim era de vantagem...
— Ora, deixe-se disso, homem, e diga lá quanto quer pelo que lhe propus.
— Já disse o que tinha a dizer.
— Ceda-me então ao menos as dez braças do fundo.
— Nem meio palmo!
—
Isso é maldade de sua parte, sabe? Eu, se faço tamanho empenho, é pela
minha pequena, que precisa, coitada, de um pouco de espaço para
alargar-se.
— E eu não cedo, porque preciso do meu terreno!
—
Ora qual! Que diabo pode lá você fazer ali? Uma porcaria de um pedaço
de terreno quase grudado ao morro e aos fundos de minha casa! quando
você, aliás, dispõe de tanto espaço ainda!
— Hei de lhe mostrar se tenho ou não o que fazer ali!
—
É que você é teimoso! Olhe, se me cedesse as dez braças do fundo, a sua
parte ficaria cortada em linha reta até à pedreira, e escusava eu de
ficar com uma aba de terreno alheio a meter-se pelo meu. Quer saber? não
amuro o quintal sem você decidir-se!
— Então ficará com o quintal para sempre sem muro, porque o que tinha a dizer já disse!
—
Mas, homem de Deus, que diabo! pense um pouco! Você ali não pode
construir nada! Ou pensará que lhe deixarei abrir janelas sobre o meu
quintal!...
— Não preciso abrir janelas sobre o quintal de ninguém!
— Nem tampouco lhe deixarei levantar parede, tapando-me as janelas da esquerda!
— Não preciso levantar parede desse lado...
— Então que diabo vai você fazer de todo este terreno?...
— Ah! isso agora é cá comigo!... O que for soará!
— Pois creia que se arrepende de não me ceder o terreno!...
— Se me arrepender, paciência! Só lhe digo é que muito mal se sairá quem quiser meter-se cá com a minha vida!
— Passe bem!
— Adeus!
Travou-se
então uma lata renhida e surda entre o português negociante de fazendas
por atacado e o português negociante de secos e molhados. Aquele não
se resolvia a fazer o muro do quintal, sem ter alcançado o pedaço de
terreno que o separava do morro; e o outro, por seu lado, não perdia a
esperança de apanhar-lhe ainda, pelo menos, duas ou três braças aos
fundos da casa; parte esta que, conforme os seus cálculos, valeria
ouro, uma vez realizado o grande projeto que ultimamente o trazia
preocupado — a criação de uma estalagem em ponto enorme, uma estalagem
monstro, sem exemplo, destinada a matar toda aquela miuçalha de
cortiços que alastravam por Botafogo.
Era este o seu ideal.
Havia muito que João Romão vivia exclusivamente para essa ideia; sonhava
com ela todas as noites; comparecia a todos os leilões de materiais de
construção; arrematava madeiramentos já servidos; comprava telha em
segunda mão; fazia pechinchas de cal e tijolos; o que era tudo
depositado no seu extenso chão vazio, cujo aspecto tomava em breve o
caráter estranho de uma enorme barricada, tal era a variedade dos
objetos que ali se apinhavam acumulados: tábuas e sarrafos, troncos de
árvore, mastros de navio, caibros, restos de carroças, chaminés de barro
e de ferro, fogões desmantelados, pilhas e pilhas de tijolos de todos
os feitios, barricas de cimento, montes de areia e terra vermelha,
aglomerações de telhas velhas, escadas partidas, depósitos de cal, o
diabo enfim; ao que ele, que sabia perfeitamente como essas coisas se
furtavam, resguardava, soltando à noite um formidável cão de fila.
Este
cão era pretexto de eternas resingas com a gente do Miranda, a cujo
quintal ninguém de casa podia descer, depois das dez horas da noite,
sem correr o risco de ser assaltado pela fera.
— É fazer o muro! dizia o João Romão, sacudindo os ombros.
— Não faço! replicava o outro. Se ele é questão de capricho eu também tenho capricho!
Em
compensação, não caia no quintal do Miranda galinha ou frango, fugidos
do cercado do vendeiro, que não levasse imediato sumiço. João Romão
protestava contra o roubo em termos violentos, jurando vinganças
terríveis, falando em dar tiros.
— Pois é fazer um muro no galinheiro! repontava o marido de Estela.
Daí
a alguns meses, João Romão, depois de tentar um derradeiro esforço para
conseguir algumas braças do quintal do vizinho, resolveu principiar as
obras da estalagem.
— Deixa estar, conversava ele na cama com a
Bertoleza; deixa estar que ainda lhe hei de entrar pelos fundos da casa,
se é que não lhe entre pela frente! Mais cedo ou mais tarde como-lhe,
não duas braças, mas seis, oito, todo o quintal e até o próprio sobrado
talvez!
E dizia isto com uma convicção de quem tudo pode e tudo
espera da sua perseverança, do seu esforço inquebrantável e da
fecundidade prodigiosa do seu dinheiro, dinheiro que só lhe saia das
unhas para voltar multiplicado.
Desde que a febre de possuir se
apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais
simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação:
aumentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a companheira
os piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém compraria; as suas
galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do que no entanto
gostava imenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida
dos trabalhadores. Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa,
uma loucura, um desespero de acumular; de reduzir tudo a moeda. E seu
tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer,
ia e vinha da pedreira para a venda, da venda às hortas e ao capinzal,
sempre em mangas de camisa, de tamancos, sem meias, olhando para todos
os lados, com o seu eterno ar de cobiça, apoderando-se, com os olhos, de
tudo aquilo de que ele não podia apoderar-se logo com as unhas.
Entretanto,
a rua lá fora povoava-se de um modo admirável. Construía-se mal, porém
muito; surgiam chalés e casinhas da noite para o dia; subiam os
aluguéis; as propriedades dobravam de valor. Montara-se uma fábrica de
massas italianas e outra de velas, e os trabalhadores passavam de manhã
e às Ave-Marias, e a maior parte deles ia comer à casa de pasto que
João Romão arranjara aos fundos da sua varanda. Abriram-se novas
tavernas; nenhuma, porém, conseguia ser tão afreguesada como a dele.
Nunca o seu negocio fora tão bem, nunca o finório vendera tanto; vendia
mais agora, muito mais, que nos anos anteriores. Teve até de admitir
caixeiros. As mercadorias não lhe paravam nas prateleiras; o balcão
estava cada vez mais lustroso, mais gasto. E o dinheiro a pingar,
vintém por vintém, dentro da gaveta, e a escorrer da gaveta para a
barra, aos cinquenta e aos cem mil-réis, e da burra para o banco, aos
contos e aos contos.
Afinal, já lhe não bastava sortir o seu
estabelecimento nos armazéns fornecedores; começou a receber alguns
gêneros diretamente da Europa: o vinho, por exemplo, que ele dantes
comprava aos quintos nas casas de atacado, vinha-lhe agora de Portugal
às pipas, e de cada uma fazia três com água e cachaça; e despachava
faturas de barris de manteiga, de caixas de conserva, caixões de
fósforos, azeite, queijos, louça e muitas outras mercadorias.
Criou
armazéns para depósito, aboliu a quitanda e transferiu o dormitório,
aproveitando o espaço para ampliar a venda, que dobrou de tamanho e
ganhou mais duas portas.
Já não era uma simples taverna, era um
bazar em que se encontrava de tudo, objetos de armarinho, ferragens,
porcelanas, utensílios de escritório, roupa de riscado para os
trabalhadores, fazenda para roupa de mulher, chapéus de palha próprios
para o serviço ao sol, perfumarias baratas, pentes de chifre, lenços com
versos de amor, e anéis e brincos de metal ordinário.
E toda a
gentalha daquelas redondezas ia cair lá, ou então ali ao lado, na casa
de pasto, onde os operários das fábricas e os trabalhadores da pedreira
se reuniam depois do serviço, e ficavam bebendo e conversando até as
dez horas da noite, entre o espesso fumo dos cachimbos, do peixe frito
em azeite e dos lampiões de querosene.
Era João Romão quem lhes
fornecia tudo, tudo, até dinheiro adiantado, quando algum precisava. Por
ali não se encontrava jornaleiro, cujo ordenado não fosse inteirinho
parar às mãos do velhaco. E sobre este cobre, quase sempre emprestado
aos tostões, cobrava juros de oito por cento ao mês, um pouco mais do
que levava aos que garantiam a divida com penhores de ouro ou prata.
Não
obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam,
enchiam-se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia
grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a
gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar lá,
porque ficavam a dois passos da obrigação.
O Miranda rebentava de raiva.
—
Um cortiço! exclamava ele, possesso. Um cortiço! Maldito seja aquele
vendeiro de todos os diabos! Fazer-me um cortiço debaixo das
janelas!... Estragou-me a casa, o malvado!
E vomitava pragas,
jurando que havia de vingar-se, e protestando aos berros contra o pó que
lhe invadia em ondas as salas, e contra o infernal baralho dos
pedreiros e carpinteiros que levavam a martelar de sol a sol.
O
que aliás não impediu que as casinhas continuassem a surgir, uma após
outra, e fossem logo se enchendo, a estenderem-se unidas por ali a
fora, desde a venda até quase ao morro, e depois dobrassem para o lado
do Miranda e avançassem sobre o quintal deste, que parecia ameaçado por
aquela serpente de pedra e cal.
O Miranda mandou logo levantar o muro.
Nada! aquele demônio era capaz de invadir-lhe a casa até a sala de visitas!
E
os quartos do cortiço pararam enfim de encontro ao muro do negociante,
formando com a continuação da casa deste um grande quadrilongo, espécie
de pátio de quartel, onde podia formar um batalhão.
Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem.
Prontas,
João Romão mandou levantar na frente, nas vinte braças que separavam a
venda do sobrado do Miranda, um grosso muro de dez palmos de altura,
coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande portão no
centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas, por
cima de uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte, escrito a tinta
encarnada e sem ortografia:
"Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras".
As
casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago adiantado.
O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis; sabão à parte.
As moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada para
lavar.
Graças à abundância da água que lá havia, como em nenhuma
outra parte, e graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço
para estender a roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar;
acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade, entre elas algumas
vindas de bem longe. E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, um
canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a
disputá-los.
E aquilo se foi constituindo numa grande
lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas cercas de varas, as suas
hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos,
que apareciam como manchas alegres por entre a negrura das limosas
tinas transbordantes e o revérbero das claras barracas de algodão cru,
armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os gotejantes jiraus,
cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de metal
branco.
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade
quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um
mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali
mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco.